24 fevereiro 2011

Bela

 Acordei mais uma vez atrasada pro trabalho, que novidade, era só o que havia fazendo a alguns meses. A idéia de passar a madrugada revisando roteiros e editando falas mal colocadas ou mal escritas, era a melhor opção sabendo que a madrugada seria minha única companhia. Dormir era quase impossível, e as olheiras embaixo de meus olhos já eram a prova física da minha exaustão. Me levantei lentamente e  me arrastei ao banheiro, o que era incrivelmente fácil. O meu apartamento, não era o que se pode chamar realmente de apartamento, na minha família chamariam de no mínimo, um apertamento – menor impossível- mas era o que dava pra alugar.

 Enquanto a água escorria pelo meu corpo a realidade foi tomando conta de mim.  Muitas vezes era difícil separá-la do trabalho. Editar filmes e dirigi-los sempre foi um sonho, mas uma vez dentro dele, as verdades se misturavam.  O filme que era protagonizados por atores amadores e desconhecidos, era chamado de Adorável Psicose. O vice-diretor era um inglês que buscava por uma carreira renomada,  mas não sabia lidar com os atores e nem com ninguém da produção, era eu a responsável por absolutamente tudo. Não podia reclamar, no entanto, educada a sempre ser grata pelo que tinha,  nunca abri a boca para maldizer aquilo que possuía.

 Terminei o banho e me arrumei para mais um dia longo de trabalho. Arrumei minha pasta e desci. No elevador encontrei minha vizinha, uma velha gorda que só reclamava comigo: “ o que uma menina nova e bonita como você esta fazendo em pleno século XXI trabalhando como diretora de filme? Deveria ser modelo, isso sim que dá dinheiro! “. Não podia negar que estava certa, mas ser modelo não era uma opção, e afinal, eu cresci ouvindo que arte era importante para sua vida, e a arte do futuro é o cinema.

 Uma vez, em dia em que os hormônios falavam mais alto,  a confrontei. Disse-lhe: “ eu faço arte! Um dia você vai me ver recebendo um Oscar pelo filme preferido dos seus netos! “ . Em momento algum olhei-a nos olhos. Era quase impossível pra mim confrontar alguém e fazer isso racionalmente. Olhá-la nos olhos, era algo fora de questão.  Sai do elevador e como de costume lhe desejei um bom dia. Era a única coisa que podia desejar a alguém como ela.

 Desci as escadas da portaria, abri meu guarda-chuva, -sim, estava chovendo em Londres, que novidade- e encarei o caminho a pé para o trabalho.  Andar sempre me relaxou, era um momento em que pensava na vida e observava aqueles que por mim, passavam. Buscava analisar suas expressões e tentar passá-las aos atores, para que parecesse o mais real possível no filme. Afinal, é isso que todo mundo quer, assistir a um filme e se sentir totalmente dentro dele, esquecer do mundo la fora e apenas viver naquela história, porque sabe que la existe um final feliz.

 Não era verdade, devo-lhe contar. Nem todos os filmes tinham um final feliz.  O filme da minha vida não tinha.  Quinze minutos de um andar apressado, cheguei ao set de filmagens. Cumprimentei todos com um sorriso no rosto, a idéia era passar para eles que tudo estava ocorrendo bem e que seria um filme de sucesso. Não podia garantir aquilo, mas queria fazê-los acreditar.

 O vice-diretor inglês de quem lhes havia contado antes, veio até mim, e eu pude adivinhar que com ele vinham problemas.

-                Alice, a assistente de maquiagem do setor 3 trouxe sua filha. Tire-a do set agora! Não quero crianças atrapalhando o meu trabalho.

 Respirei fundo e fiz que sim com a cabeça. Qual o problema daquele homem? É apenas uma criança, meu Deus! Cheguei a sala de maquiagem e me deparei com  uma criança simplesmente linda. Ela tinha a pele branca e as bochechas rosadas de frio, seu cabelo era liso e escuro e seus olhos tinham cor de mel. Assim que a vi, não pude conter um sorriso, e com um sorriso de orelha a orelha ela veio na minha direção e me abraçou.

-                Oi! Qual é o seu nome? - disse

-                Bela. E o seu é Alice, você é a diretora desse filme de sucesso, e eu quero ser igual a você quando eu crescer.

-                Pra quê? Seja você mesma. Uma menina linda como você não tem que querer ser ninguém além de si própria. – muito menos alguém como eu, pensei.

-                Mas eu quero ser uma diretora de sucesso também!

-                Quer dizer então, que você gosta de cinema?

-                AMO! – aquela foi a resposta que eu precisava ouvir.

 Olhava para aquela menina e me via dentro dos seus olhos. Aquilo era como um espelho do passado. Seu sorriso, sua animação e a vontade de aprender tudo sobre aquilo que amava. Perguntei a sua mãe se ela se importaria de deixar a pequena Bela comigo para que pudesse mostrar todos os lugares e as coisas legais que se fazia em um set de gravação, com um olhar de agradecimento estampado no rosto, dei as mãos com o meu passado e sai.

 Apresentei- lhe a área de efeitos especiais, de edição das cenas, o setor de arte gráfica- ela pirou la dentro, assim como eu havia feito na minha primeira vez- a área das gravações e o meu lugar preferido, a sala das câmeras. Ensinei-a a mexer com uma câmera filmadora profissional, e a editar a sonoplastia da cena. Via como seus olhos brilhavam e como ela amava tudo aquilo. Lembrei do meu amor pelo meu trabalho, e como ele foi se desgastando a cada noite mal dormida.

 No fim do dia, estávamos as duas muito cansadas. Levei-a de volta para sua mãe que agradeceu incansavelmente por ter ocupado ela durante o dia.  Continuei  editando as ultimas cenas gravadas e dispensei o pessoal da produção.  Como sempre, fui a última a sair dali.

 Bela passou a ir todos os dias para o set com a mãe, e eu passei a me divertir. Voltei a minha infância e a com ela, minha paixão por filmes. Meu humor era outro, sorria até pra velha gorda que morava no meu prédio. Os dias passavam e os problemas com a produtora aumentavam. Até chegar o dia em que aquele idiota daquele inglês imprestável, se demitiu e eu tive que assumir tudo sozinha. O pânico tomava conta de mim. Sabia que não conseguiria fazer tudo, e a minha companhia de sempre, por algum motivo, ainda desconhecido, não ia mais ao set.

 A única vez que arranjei tempo para falar com sua mãe, apenas ouvi uma resposta curta e grossa, totalmente inesperada:

-                Ela tem que parar de sonhar que algum dia vai ser como você. As gravações estão acabando e ela só vai sofrer mais. Prefiro que não venha.

 Aquelas palavras me machucaram como uma faca entrando no meio peito. Era possível alguém ser tão egoísta?  Não sabia o que estava acontecendo, mas podia sentir que aquilo não era inteiramente verdade. E eu, determinada e insistente, não iria desistir até descobrir a verdade, ainda que tivesse que me dividir em 3 pra fazer tudo o que pretendia.

 Alguns dias depois, tudo estava menos caótico, havia contratado outro vice-diretor, esse um americano que fazia até mais do que precisava. Os problemas financeiros da produtora estavam quase todos resolvidos, e agora só faltava eu encontrar com o meu passado e trazer ele de volta. Fui até a sala de maquiagem, coisa que a algum tempo já não fazia, e vi aquela moça de pele clara, que dias antes havia sido inesperadamente grossa, sentada chorando. Corri até ela e quase sem conseguir falar, balbuciou:

-                A Bela não me acompanha mais porque ela está internada no hospital, ela tem leucemia e a doença atacou novamente. – aquilo foi um choque pra mim. Outra facada. Dessa vez, mais profunda.

-                Calma, vai ficar tudo bem, você vai ver. – tentava me convencer do mesmo.

-                Eu queria poder dizer isso, mas não temos dinheiro para o tratamento e se não fizermos nada...

 Não foi preciso mais nada para que me dispusesse a ajudar no tratamento. Sabia que os meus problemas eram grandes mas não podia arriscar perder aquela criança que me fez sorrir de novo. Ela era minha única amiga de verdade, ela me entendia, e ela tinha apenas 7 anos, tinha muita coisa pra viver ainda e aprender, ela ainda tinha um sonho para realizar.

 Passei a freqüentar o hospital mais que minha própria casa, e assim que o filme ficou pronto e saiu em cartaz, o meu primeiro lucro foi todo voltado para o seu tratamento, inclusive o pouco dinheiro que me restou eu gastei em uma câmera filmadora que lhe dei de natal.  Muitas vezes era preciso insistir para sua mãe que aceitasse o dinheiro, mas nada que não fosse negociável.  A sua recuperação foi lenta, mas já podia ver aquela felicidade em seu rosto novamente. As bochechas rosadas e o sorriso sincero se tornaram cada vez mais constantes.

 O ano se fechou com um sucesso de bilheteria , duas novas amizades, e a minha felicidade de volta. Eu sei que apesar das complicações, hoje, eu nada seria sem a Adorável Psicose.

 

 

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